Arranca

Publicado: janeiro 20, 2021 em Contos

Ela aprendeu no curso de magistério quem era Maya Angelou. Ali começava sua narrativa de libertação. Não queria guardar sua história não contada. Então a partir do dia que terminou o último livro escrito pela autora, passou a escrever suas agonias nas portas da lojas. Ao cair do dia, quando tudo fechava e o horário comercial findava, quem passasse pelas ruas lia: “No dia 20, eu não fui estuprada, mas tive meus cabelos arrancados pela fúria daquele que disse que me amava” e ali, entre lojas e lanchonetes, ela desaguava o que nunca aconteceu.

2019 litros de respingos

Publicado: abril 26, 2019 em Contos

Tinha costume de colecionar fósforos usados. Adorava os de cabeça verde, apesar de ter simpatia pelos de cor-de-rosa. Mas achava os pretos elegantes, imponentes e clássicos. Às vezes passava horas juntando as pontas e pensando que talvez fosse a chama um resquício de alma pendurada, uma voz rouca que te sussurra em momentos que tudo parece queimar.

Gostava do ato de riscar. O verde, o rosa, o preto, tudo virava lume. Se sentia espiral em construção, perspectiva avançada de algum ponto em vertigem. Alguma reação em física póstuma, solta em um pedaço de universo que teimava em se desdobrar. Dona de 2019 litros de respingos.

Talvez quisesse um dente de leão em fuga, alguém que atirasse música como quem estala os dedos, um afeto que olhasse para suas cutículas e não seus dedos.

Sentia falta daquele momento respiro, a brevidade entre som e silêncio, o cair que você observa quando está do alto, a negligência de não olhar para os dois lados.

Queria o antes, a expectativa, a fundação, o quente da raiz da árvore, o primeiro piscar de quem deixa de adormecer. Quando riscava fósforos, independente da espécie, era tipo linha e costura, banjo e trompete, incenso e fumaça, acre e luz, noite e luneta.

Alguém com olhos de estrelas decadentes em petricor.

Outubro de 2018 – antes

Publicado: outubro 24, 2018 em Das coisas que se aprende

Enquanto caminhávamos por paralelepípedos

Um sol rachava minha flor

Que estava em mãos e não em solo

Porque eu queria, a todo custo, salvá-la

De todos aqueles que diziam que ela era daninha.

E enquanto eu corria daqueles que queriam despedaçá-la

Aqui caí com suas pétalas em meus dedos

Olhando para as linhas que alguns diziam já serem traçadas

Como quem desconfia que destino é coisa de céu cinza.

Eu não derrubei nenhuma lágrima,

Mas matei a única coisa que realmente queria:

O pólen da margarida que achava que estava esquecida.

 

Aconteceu de madrugada. E sumiu pela sexta-feira. Dia de um tambor que não pode ter corpo, mas que urge na alma. Pequeno pedaço de memória bienal, como se pudesse ter remendos naquele cantinho de coração que não enferruja, por mais que você jogue Coca-Cola.

E hoje quando penso que lá longe a lua sobe, aquele pedaço de pele rasgada volta. Como ponto descosturado. Agulha em lã poída. Desaprender em traço e pontilhado. Pedaço de coisa que diz que viver é indutar a esquecer e perder, evocar e ceder. Reminiscência.

Esqueçam Raphael Montes. O nome que se destaca na literatura brasileira de suspense – atualmente – vem de uma moça que mora em Maricá (Rio de Janeiro) e que tem em suas mãos o dom nato de nos deixar com aquela sensação mista de estranhamento e maravilhosa curiosidade a cada página que viramos. O nome dessa relíquia? Glau Kemp e seu “Quando o mal tem um nome”.

Sinceramente, quando li a mensagem da autora no Skoob divulgando seu livro, o título não me chamou atenção. Pensei: “mais um livro clichê”, “mais um ebook” sem graça. Porém, a simpatia da autora e sua pré-disposição em trocar resenhas me fez comprar o livro na Amazon. Foi a maior surpresa de 2017. Comecei a ler o livro no começo de dezembro, na mesma semana que ele ultrapassou Stephen King, se tornando o número 1 de mais vendidos da Amazon.

Minha grande birra com livro de literatura de terror nacional é essa mania de copiar autores estrangeiros, mas o grande destaque de Glau Kemp é sua voracidade em reinventar o que já conhecemos. Não temos aqui uma trama original, em termos de nunca antes escrita, mas sim uma maestria em reconstruir uma história já conhecida – o filho do mal – com toques de agonia, técnicas de suspense e verossimilhança. Aqui a presença do real e o fantástico é aterrorizante porque não sabemos até que ponto o que os personagens vivenciam é fruto de uma obsessão real ou do mal incarnado em nível máximo. A grande conquista da narrativa é nos deixar nessa corda bamba “isso é coisa da cabeça do personagem” ou “ai meu Deus, não, isso é coisa do mal puro!” A própria autora diz, “como as coisas ruins gostam de surpreender, elas ocorrem em lacunas de normalidade.”

Me senti na atmosfera sufocante de “Carrie, a estranha” com uma mistura de terror psicológico que presenciei em “A menina que não sabia ler”. Kemp é uma autora que investe pesado nos personagens, nos presenteando com camadas profundas dessas mentes complexas. Lembranças que nos remetem também ao conto de King “1922” (agora série da Netflix).

Foi uma leitura frenética, terminada em dois dias. Apesar de possuir um final previsível, – pelo menos para quem é fã de terror – o livro vai muito além de seu final. É aquele tipo de história que você pode até conhecer e saber como vai acabar, mas dependendo daquele que conta – grande mérito de Glau Kemp – você se arrepia e se confronta com emoções ambíguas como se nunca tivesse visto ou sentido antes.

Ao terminar “Quando o mal tem um nome” fiquei com aquela sensação de ter alguém nos observando, de ter entrado e saído de um local mal assombrado e ficar com aquilo pendurado no ombro, com vontade de correr até passar. E ao correr, rola também uma alegria indescritível por ter cruzado com uma escritora contemporânea que preze pela literatura de horror. Porque convenhamos, quantas escritoras de terror você conhece no cenário brasileiro?

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SOBRE A OBRA:

Sinopse: “Sinto medo. O tipo de medo que persegue até a presença de outras pessoas. Segue até a luz e entra nas cobertas. Não está debaixo da cama ou dentro armário. Está em minha pele e tem um nome. Não pergunte. Não descubra. Nunca saiba o nome do seu medo, ou irá chamá-lo… Seus lábios podem estar selados, mas sua mente repetirá: Donavan… Donavan… Donavan.”

Na Aparecida dos anos 70, uma cidade erguida no centro de um milagre, conhecemos a história de Marta e sua filha Clara. De sua terra cultivada por fé a malignidade cresce no coração de uma mãe devota. As orações que a padroeira não atende são feitas agora para eles: anjos caídos. Ela não deveria saber o nome do demônio que atendeu sua prece, e a abominação despertada é tão grande que todos vão pagar pelo seu pecado. O mal só precisava que alguém o chamasse pelo nome e agora está entre nós.

“Faça uma oração antes de dormir e deixe a luz acesa. Se vir a fé em seus olhos, talvez vá embora. Mas ele virá”

— Por que um demônio iria querer vir até à casa de Deus, minha jovem?
— Por que o senhor iria até a casa do demônio, padre?
— Para levar a luz até ele.
— O demônio também tem seus planos.

Para comprar: Amazon

 

Dias glorificados há muito tempo atrás

Publicado: agosto 5, 2017 em Contos

Ele nunca retornou do “Vou ali comprar um cigarro”. Eu ainda segurava seu travesseiro ao avesso quando vi luzes do lado de fora. Azuis e vermelhas. Ele, a vítima da trouxa que escondia debaixo da cama, não havia retornado desde a noite anterior.

“As pessoas têm o poder! As pessoas têm o poder!” – eu ouvia do lado de fora. Caminhei até o espelho do banheiro e observei as rugas que aquilo tinha colocado em minha face. Levantei meu rosto que quase não tinha queixo e sorri. Tinha essa mania de checar se meus dentes estavam alinhados, queria sim demonstrar uma felicidade que poderia ser traduzida em qualquer lugar que fosse. Toquei a pequena pinta que tinha na bochecha.

Se eu engolisse tudo que estava na trouxa morreria ali?  Como seria ser um cadáver sem queixo? Em que momento minha pinta se desintegraria?

Meu pai sempre soube que eu era uma moça boba e vivia me dizendo: “Venha comigo, você é muito boba. Não pode ficar sozinha por mais de uma hora.” Mas ele não estava ali para me orientar nem ao menos para dobrar as roupas de cama. Não tinha ninguém para esconder a trouxa. Aquele pequeno pacote que nunca imaginei segurar, nem quando ele me pediu para tocar Constantine’s Dream. Aquela maldita música era um presságio e eu não sabia. Voltei ao silêncio do meu quarto. A letra da música adentrava meus ouvidos como se sussurrasse meu presente. Um medo agarrou minhas entranhas. Abaixei o corpo, tateei o chão e toquei na trouxa.

As luzes ficaram mais fortes, se aproximavam como vento que percorre batente da porta. Senti o calor do objeto. Apertei aquilo que ele disse que estava destinado a proteger. Que irônico dar uma saidinha quando a vida de todo mundo está mudando. Batucadas na porta, sons e uma explosão de cores. As vozes se distanciavam. A trouxa brilhou. Eu, que no meio estava, de branca passei para furta-cor.

Então tudo ficou prateado como no futuro distante. A trouxa flutuou de minha mão e quando pensei “eu é que deveria ter ido comprar cigarros”, fui abduzida. Varrida da existência terrena como se fosse Lúcifer. Um sopro que se foi, uma saliva engolida, um esquecimento da natureza, a roda dos escolhidos.

Toque do blues

Publicado: fevereiro 19, 2017 em Contos

“O futuro dedilhou-me. Tocou-me blues.”

O homem de bigode ralo, pele rosada e dobras fartas bravejou ao barco que estava ali há três domingos.

Esse poderia ser um conto das montanhas fragosas, mas não era outono de 1827 e sim o outono dos séculos imperfeitos.

“O futuro dedilhou-me. Tocou-me blues.”

Nabu era seu nome e ele bravejava as palavras do profeta. O homem das dobras fartas conhecera o profeta das águas que levavam ao céu em um dia não-chuvoso. Caminhava entre as pedras quando o profeta o abordou:

“Filho, venha cá. Tenho seu futuro no dorso da mão”.

Aquele que tinha o bigode ralo acariciou seus pelos faciais e aproximou-se.

“Muito bem. Sabia que assim deste o primeiro passo para o futuro próximo?”

A pele rosada avermelhou-se.

“Hum… Muito bem, anos, muitos anos, algumas pedras e um caminho para salvação. Tu andarás pelo ritmo daqueles que percorreram a rota do blues” – e assim o profeta tocou a ponta do dedo mindinho de Nabu. – “Prevejo uma vida de grandes sonhos e acordes”.

As dobras fartas balançaram com uma risada.

“Senhor, não sei nem ao menos assobiar.”

“Com seu novo mindinho saberás de coração como é o encanto nas montanhas e o som de New Orleans” – respondeu o profeta.

“E o que devo em troca?” – perguntou Nabu.

“Palavras, você repetirá essas palavras” – e sussurrou no ouvido do homem.

Nabu não saberia falar outras frases a partir dali. Ele repete “O futuro dedilhou-me. Tocou-me blues” para qualquer pergunta e qualquer resposta. Tornou-se um homem calado, mas com a maior capacidade musical desconhecida de toda a história da batalha das encenações musicais. No rio Yazoo ele se banha toda vez que perde inspiração e fica rouco e para que seu talento retorne dia após dia, ele precisa repetir a frase do profeta pelo menos três vezes ao dia. Como água, as palavras são sobrevivência. A música é apenas uma externalização daquilo que ele quer definir, mas perdeu a capacidade de verbalizar.

Já o profeta? Ele nunca mais foi visto.

 

Expurgo

Publicado: fevereiro 8, 2017 em Contos

Quando definitivamente ela decidiu parar de roer unhas, começou o Purge no Espírito Santo. 2016 estava grudado em suas costas e trazia sempre más notícias. Ela tentou usar sabonete líquido, mas o ano estava decidido a ficar, não passaria a bola da vez. Trouxe caos, fome, agonia e ódio generalizado. Quando aquele ano finalmente decidiu que já estava na hora de ir embora, alguém usou dessa tal tecnologia de ponta e clonou sua maior tensão. Sim, ela voltou a roer unhas.

O clube do livro

Publicado: dezembro 3, 2016 em Contos

Decidiu criar um clube do livro na terça-feira daquele ano que terminava com seis. Um clube do livro de terror, onde as pessoas leriam seus contos preferidos em voz alta, ficariam com o coração acelerado e se tivessem pelos nos joelhos, eles se eriçariam.

Abraçou seu livro preferido quando teve a ideia como se aqueles personagens também fossem amigos seus. Releu suas frases prediletas e decidiu que a reunião aconteceria na livraria que mais cheirava a flor de morto. Anunciou que cada um trouxesse também seu livro favorito.

Esperou horas e teve dor nas juntas, como se a dor viesse em wi-fi. Contou os suspiros que a livreira deu, as vezes que a lâmpada piscou e quando pensou que sua ideia era um fracasso, o primeiro fantasma adentrou.

Era um pouco acanhado e trazia uma cópia amarelada de Lovecraft. Ela se assustou, achou que seu primeiro companheiro seria um ser vivo, mas logo logo acomodou o moço do além e eles ficaram vinte minutos conversando sobre estrutura narrativa e diálogos clichês quando mais um fantasma, agora bambo, entrou.

Veio pelo cheiro das folhas. Disse que do lado de fora da livraria tinha algumas almas penadas que queriam muito conversar sobre uma história de lareira e som. Ela sorriu, já não precisava mais dos vivos.

Depois de Vento e Calor

Publicado: março 26, 2016 em Contos

Tinha cheiro de dezembro quando o Vento dobrou a esquina trazendo o Calor. O Vento era alto, esguio e de um tom grave. Já o calor era baixinho, bem mais minúsculo do que eu imaginava, bochechas avermelhadas, sorriso com os dentes separados e cabelo suado.

Pararam em frente ao meu portão de rosas sem espinhos. Abri na mesma hora porque a vizinhança poderia me ligar dizendo que aqueles dois estavam ali parados e gente ali parada, naquele bairro, não poderia esperar.

– Oi – eu disse abraçando o  maior.

Tinha um efeito meio invisível ao fazer isso, era como se não tivesse acontecido por cerca de três segundos. Logo depois, minha mente foi preenchida com o apertar de mãos do Calor, emanando aquele tipo de energia branda e serena.

– Trouxemos um novo tipo de cabelo para você – me informou o Vento.

– E uns elásticos para penteados – disse o Calor.

Agradeci e perguntei se queriam chá de hibisco. Eles negaram e apenas me mostraram a câmera fotográfica.

– Isso é necessário? – eu perguntei.

– Precisamos registrar – o Calor respondeu enquanto o Vento me passava tal mudança.

Enquanto um deles apertava o botão que tiraria minha primeira fotografia com meu mais novo traço de identidade, senti aquela brisa de corte logo ali na nuca, arrepiando meus pelinhos e me fazendo escutar melhor. O céu estava azul como uma canção entoada pelos The decemberists.

– Sorria – O Vento me disse.

Quando fiz o movimento para mostrar alegria, meu novo cabelo surgiu. Rebelde, volumoso, grosso, registrado em uma fotografia analógica.

Pude ver pela foto que nossa convivência seria próxima. Definitivamente eu precisaria de vários penteados.

Fechei a porta e fui direto para o espelho.

– Olá, meu nome é _________.

Esqueci. O que importava era só aquela sensação de novidade. E foi pelo meu cabelo que a novidade começou.

Logo depois toda minha vida mudou de cor. Não mais enxergava o Vento, mas o Calor, o Calor, esse sim, estava sempre presente. Em escadas, lugares fechados, abertos, transportes… Toda vez que ele chegava, eu agora suava.