A forma barométrica

Publicado: janeiro 3, 2012 em Contos


 

Foi durante o tempo do céu branco que Elisabete Dupré encontrou dois grilos não verdes. Ela os chamou de grilos porque adorava mudar  palavras de lugar. Fazia isso para que Merlu de Torre gritasse bem do topo de sua garganta que ela estava errada.

“O céu ficará sem cor no dia em que eu estiver errada” – ela dizia – “Um dia você vai perceber que eu nunca erro sobre essas coisas”.

Merlu de Torre na maioria das vezes tentava fuzilá-la com seus olhos estreitos e furiosos. Ele tinha sobrancelhas finas e boca pequena, como se as palavras nunca pudessem sair de dentro de si cheias.

“Você nunca conseguirá me matar por pensamento, Merlu”

Elisabete Dupré colocou os dois grilos em seu ombro ossudo e cheio de pintas. Sua camiseta branca combinava com seu jeans surrado de tanto escorregar por pedra e água. Ele a seguia por entre os limos enquanto ela prendia o cabelo bem ao alto e abria os braços toda vez que encontrava uma sombra.

“Às vezes você tem que abrir os braços bem assim”, ela dizia.

Ele em outras vezes segurava um dos pés e pulava entre os espaços das pedras porque dizia que seu pé afinava quando fazia isso. Foi em uma dessas vezes que Elisabete Dupré tirou do bolso de trás de seu jeans um cigarro e acendeu e tragou como se tivesse passado a vida toda praticando.

“Por que você está fazendo isso?”, ele perguntou.

“Pra ter cheiro”

Merlu de Torre deu dois passos em direção ao corpo que segurava grilos. Elisabete Dupré estava suada, os cabelos engordurados caíam sobre os ombros, provavelmente não lavados há mais de uma semana. Primeiro ele deu uma leve fungada. Depois pareceu retirar todo o ar em volta de Elisabete.

“Verdade. Você…”

Ela abaixou a cabeça e tragou grande parte do cigarro, que diminuiu como se estivesse com vergonha. Merlu de Torre foi invadido por uma curiosidade que muitas vezes reprimimos, mas naquele momento, durante o tempo do céu branco, ele não controlou. O menino apoiou as mãos sujas de terra sobre a testa de Elisabete Dupré e com uma naturalidade primitiva lambeu sua testa.

“Você também não tem gosto”, ele disse.

Elisabete Dupré passou o cigarro para outra mão e lambeu o próprio pulso. Ela não tinha gosto. Dois olhos verdes, desses grandes e iluminados, olharam para Merlu de Torre. Ela não se apoiou em nada, mas afastando a fumaça passou a língua sobre o pescoço do menino. Ele tinha gosto de areia misturada com ajinomoto.

“Verdade”, ela disse.

Tragou mais um centímetro de seu cigarro e expeliu fumaça por todo o dorso. Passou para Merlu apenas o fim do filtro. Ele tentou segurar a fumaça o máximo que pode e quando não mais aguentou assoprou nos dois pulsos dela.

“Agora você tem cheiro de fumaça”, ele disse, amassando o cigarro com o pé puro.

“Sou então feita de vapor”.

À noite, Merlu de Torre pediu à mãe para colocar água na chaleira e quando ouviu o barulho da fervura, chegou bem perto do fogão e deu uma grande fungada. Descobriu logo em seguida que o vapor era inferior à sua temperatura crítica.

comentários

Deixe um comentário